Aprovada na Câmara, MP insere comercialização de créditos de carbono no modelo de concessão de serviços florestais
Por
JULIANA GOMES MIRANDA
MARIA VICTORIA HERNANDEZ LERNER
Na semana passada, a Câmara dos Deputados aprovou a MP 1151, de 2022, e encaminhou o texto ao Senado para seguimento do processo legislativo. Apresentada no apagar das luzes da gestão passada, em 27 de dezembro, a Medida Provisória altera a Lei de Concessões Florestais para inserir a comercialização de créditos de carbono no âmbito do modelo de concessão de serviços florestais, ampliando sua incidência para florestas protegidas e unidades de conservação, com a justificativa de tornar o mercado voluntário de carbono mais atrativo. Além disso, autoriza a ampliação de agentes financeiros, incluindo fintechs privadas, para financiamento de recursos do Fundo Nacional de Mudanças Climáticas, até então operado somente pelo BNDES, mantido, entretanto, o risco suportado apenas por este último.
No bojo da urgente discussão para adoção de medidas efetivas aoenfrentamento das mudanças climáticas decorrentes de emissão de gases do efeito estufa, é fundamental que os conceitos, os critérios e a regulamentação do mercado voluntário de carbono no Brasil sejam discutidos ampla e profundamente com a sociedade civil brasileira, sendo assim incabível o rito e O mercado de carbono no Brasil não é regulado como o é o mercado da União Europeia, que estabelece metas mandatórias de redução de emissões. Isso significa que as iniciativas brasileiras de projetos que evitam desmatamento ou que buscam reflorestamento de áreas degradadas se inserem no mercado voluntário de carbono. Este, por sua vez, obedece a critérios definidos a partir de padrões internacionais de verificação, com metodologias determinadas por empresas e entidades não governamentais, distante, portanto, de fiscalização e atuação de órgãos públicos. A grande maioria de projetos já desenvolvidos no Brasil é, dessa forma, submetida à Verra, uma das principais certificadoras de créditos de carbono no mundo.
O cenário brasileiro, contudo, é bastante complexo por algumas razões, dentre as quais destacam-se:
(i) grande parte das florestas protegidas e unidades de conservação é de terras públicas, com ocupações tradicionais de guardiões históricos, populações indígenas, comunidades tradicionais, quilombolas, que travam luta permanente em direção ao reconhecimento de suas terras e proteção ambiental. O mercado voluntário de carbono no Brasil já atinge essas populações, com graves impactos em seus modos de vida e organização política. Nos últimos meses, inúmeras matérias jornalísticas expuseram casos que denotam verdadeira corrida de empresas e agentes intermediadores com vistas a vincular contratualmente pedaços de terra ocupados pelas comunidades a projetos de carbono, comprometendo, inclusive, gerações futuras. A assimetria de informações e são vendidas por atores, atropelando direitos como a consulta prévia livre e informada;
(ii) ao se considerar o ativo ambiental como ativo financeiro, a floresta amazônica, cerrado e mata atlântica passam a se tornar alvos de forte especulação financeira. Isso significa que grande parte do território brasileiro passa a ter mais um motivo de disputas por causa da financeirização da natureza, aguçada ainda mais pelos tristes recordes de desmatamento no Brasil atingidos nos últimos quatro anos;
(iii) o caos fundiário, que historicamente caracteriza a situação das terras brasileiras, é elemento de maior complexidade na região norte do país. Há relatos de projetos de carbono em implementação sobre terras públicas, sem a observância do direito agrário brasileiro e, consequentemente, das especificidades de cada categoria fundiária. O mercado de carbono não poderá ser um instrumento para grilagem de terras públicas.
Numa política de desenvolvimento de matriz extrativista, o mercado de carbono pode ser considerado uma grande oportunidade de enfrentamento não só das mudanças climáticas, em âmbito internacional, mas também, em âmbito local, uma alternativa ao garimpo ilegal, ao tráfico de madeira e ao desmatamento. No entanto, qualquer iniciativa de regulamentação desse mercado deverá passar ainda por questões como: a que serve esse mercado? Quem ganha e quem perde? Quem é dono do carbono? Qual é a natureza jurídica do crédito de carbono? É possível realizar projetos de carbono em terras públicas? É possível realizar projetos de carbono em terras ocupadas por populações guardiãs da floresta? Incide sobre esses projetos a aplicação de consulta prévia, livre e informada? É possível falar em comércio justo de carbono? Como se dará a fiscalização das novas dinâmicas surgidas a partir do mercado de carbono? Tais questões, ainda que básicas, são altamente necessárias para o entendimento do mercado de carbono no Brasil. No entanto, essas perguntas não poderão, nem de longe, ser debatidas e respondidas no célere rito da medida provisória. É preciso que qualquer construção de diretriz ou normatização sobre a comercialização do crédito de carbono, sobretudo em área pública, conte com a participação ativa e o protagonismo dos povos da floresta, gestores, cientistas e ativistas que historicamente ocupam e defendem tais áreas protegidas. É importante relembrar que a Lei 11.284, de 2006, que dispõe sobre a gestão de florestas públicas para a produção sustentável, foi precedida de amplo debate.
Trata-se de debate urgente, que não deve ser raso e açodado, sob pena de chancelarmos juridicamente violações históricas sofridas por populações tradicionais e uma apropriação da natureza em nome do necessário combate às mudanças climáticas.
JULIANA GOMES MIRANDA – Advogada e pesquisadora, doutoranda em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília (UnB). Sócia fundadora do escritório Hernandez Lerner e Miranda Advocacia em Direitos Humanos
MARIA VICTORIA HERNANDEZ LERNER – Advogada criminalista e em direitos humanos, mestre em Direito pela UnB e sócia fundadora da Hernandez Lerner e Miranda Advocacia
Fonte: Jota