CNJ reproduz em ato normativo ausência de diálogo com segmentos diretamente interessados
JULIANA GOMES MIRANDA
No último dia 15 de junho, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Recomendação nº 129. Destinada aos tribunais de todo o país, o texto orienta a adoção de “cautelas visando a evitar o abuso do direito de demandar que possa
comprometer os projetos de infraestrutura qualificados pelo Programa de Parcerias de Investimentos (PPI), previsto na Lei 13.334/2016”.
Em seus considerandos, o CNJ alega “necessidade de tratamento adequado de conflitos de infraestrutura qualificados” pelo PPI, cita iniciativa do governo federal em “investir em solução célere e eficiente” aos conflitos judiciais relativos às obras, buscando garantir “segurança jurídica ao setor” e fundamenta seu ato normativo no âmbito da Resolução nº 125/2010, que dispõe sobre a Política Nacional de Tratamento Adequado de Conflitos de Interesses.
Ademais, afirma que o “Estado brasileiro optou por priorizar a tramitação de projetos de infraestrutura classificados dentro do Programa de Parceria de Investimento” e que o acesso à justiça “não pode ser utilizado de modo indiscriminado e abusivo, comprometendo a segurança jurídica no ambiente da infraestrutura”. No artigo 2º conceitua o abuso do direito de demandar como “o ajuizamento de ações com aparente caráter de urgência infundada, em expediente normal ou plantão judiciário, com o intento de questionar projetos, leilões ou contratos de infraestrutura que se encontram em fases de desenvolvimento”.
A Recomendação instrui a magistratura a adotar essa nova classificação de fenômenos prioritários “projetos de infraestrutura qualificados pelo Programa de Parcerias de Investimentos (PPI)” e a seguir as seguintes “cautelas antes de decidir
qualquer tutela de urgência”:
- verificar se o projeto a que se refere o caput observa o procedimento de governança, conforme protocolo Anexo;
- ouvir os órgãos da administração pública responsáveis pelo projeto de que trata o caput;
- consultar o protocolo anexo para subsidiar suas decisões quanto às ações referentes aos projetos de que trata o caput.
Algumas primeiras perguntas que ocorrem ao destrinchar essa recomendação são: o que buscam essas tutelas de urgência que tanto o Judiciário quanto o Executivo demandam cautela ao julgar? Estariam essas tutelas de urgência abusando da
garantia constitucional de acesso à justiça? E, em seguida, refletimos: por que o setor de infraestrutura adota, em geral, um caminho deficitário em participação e controle social em seus processos de tomada de decisão?
Quanto ao conteúdo dessas tutelas de urgência, buscando responder às perguntas acima, escolhemos (aleatoriamente) dois casos que o anexo à Recomendação faz menção. O primeiro caso é o do Porto de São Sebastião (SP), cuja desestatização
está prevista para 2022. Em face da proposta de privatização, federações e sindicatos de trabalhadores do setor portuário ajuizaram, no início deste ano, ação ordinária contra a União, buscando suspender a Consulta Pública (Acórdão/Antaq
783/2021 e Aviso de Audiência Pública 20/2021), relativa ao certame licitatório de Concessão do Porto Organizado de São Sebastião.
Os trabalhadores alegaram ausência de transparência e dificuldade de acesso a documentos técnicos e jurídicos da proposta, ao passo que o juízo de primeira instância deferiu liminar, determinando a suspensão da consulta e confirmando o
dever da administração em garantir o devido acesso à informação. Medida esta que foi mantida em recurso pelo TRF3. No entanto, o presidente do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em fevereiro, deferiu monocraticamente pedido de suspensão de liminar e de sentença, ajuizado pela União e pela Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq). A medida foi agravada, aguardando julgamento da Corte Especial.
Ainda sobre o caso, em 2014, o Ministério Público Federal e o Ministério Público de São Paulo ajuizaram ação civil pública em face do Ibama e da Companhia Docas de São Sebastião, alegando que o licenciamento se baseava em estudos incompletos, podendo implicar graves danos irreversíveis ao meio ambiente. Na ocasião, o juízo decidiu em caráter liminar por suspender o licenciamento até que se faça necessária retificação aos estudos.
O segundo caso que pinçamos do anexo à Recomendação é o da Ferrovia de Integração Oeste-Leste (FIOL), cuja desestatização do trecho I – Caetité (BA) a Ilhéus (BA) – foi concluída no final do ano passado. Com um conjunto diverso de
ações judiciais e reiteradas fiscalizações do Tribunal de Contas da União (TCU), a FIOL abriga discussões referentes a seus efeitos negativos sobre equipamentos públicos, cidades, propriedades e comunidades, como é o caso da lide com a
Companhia Elétrica do São Francisco (Chesf), que opera a Usina Hidrelétrica Pedra; com a Fazenda Baviera, de propriedade do Grupo Odebrecht; com a Linha de Transmissão Aliança de Energia Elétrica (Taesa), a mineradora Atlantic Nickel Ltda, além dos vários processos em que famílias desapropriadas têm questionado judicialmente a concessionária Valec.
Outra situação bastante grave relacionada à ferrovia diz respeito aos impactos sobre comunidades tradicionais e seus territórios. Organizações da sociedade civil e comunidades quilombolas, sobretudo, têm atuado de forma emblemática,
administrativa e judicialmente, exigindo o respeito à sua territorialidade e ao seu direito à consulta, livre, prévia e informada, nos termos da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Assim, sem a pretensão de esgotar os casos ou generalizar os fatos, os exemplos trazidos reverberam em suas tutelas questões trabalhistas, questões relacionadas à segurança de equipamentos e das pessoas, ao direito à moradia digna, à reparação
por danos, ao direito à consulta e consentimento prévio e ao direito de acesso à informação, questões que, uma vez ignoradas pela administração pública, demandam, evidentemente, prestação jurisdicional urgente.
Quanto à questão sobre os processos de tomada de decisão em relação a esses empreendimentos, queremos assinalar para reiterada implementação por parte do poder público de políticas de infraestrutura no Brasil sem participação social.
Diferentemente do setor social de políticas públicas (saúde, assistência social, alimentação adequada, moradia), que historicamente foram territórios de interface socioestatal de construção, participação e deliberação conjunta entre sociedade e
Estado, as políticas de desenvolvimento econômico e de infraestrutura parecem sofrer de déficit democrático.
Enquanto a área de proteção social se configurava, até meados de 2019[1], com mobilizações de interfaces socioestatais públicas e coletivizadas, como conselhos e conferências, a temática de infraestrutura se destaca por se associar a instrumentos de participação mais individualizados ou episódicos, como audiências públicas. E a área de desenvolvimento econômico se apresenta como a mais baixa em mobilização de mecanismos de interface Estado e sociedade (Ipea, 2012).
Tanto no licenciamento ambiental, quanto na contratualização desses empreendimentos, há previsão de participação social, tais como consultas e audiências públicas. Mas a realidade que se impõe para esses momentos é de uma
participação muitas vezes seletiva ou restritiva, com acessos e participações desiguais (FEITAL, BRONDÍZIO, FERREIRA, 2018).
Em variados casos de audiências e consultas públicas realizadas pelas agências reguladoras, a presença predominante do público não é de comunidades possivelmente atingidas, mas sim de interessados e investidores do projeto. E, no
licenciamento ambiental, apesar da previsão de um processo mais participativo, vários desses mecanismos já foram objeto de ações judiciais que questionam os próprios processos de audiências públicas, estudos de impactos ambientais e a
inobservância do dever de consulta livre, prévia e informada de indígenas, povos e comunidades tradicionais.
É relevante notar que até mesmo o CNJ, que tem tradição em reconhecer a participação da sociedade civil, inclusive na sua conformação, reproduziu na elaboração desse ato normativo ausência de diálogo com segmentos diretamente
interessados e atingidos pelos seus efeitos práticos. Frente a essas reflexões, é preciso se perguntar o que esperar do nosso Judiciário diante da recomendação do CNJ? A uma primeira vista, esse ato normativo parece não falar de justiça, mas de reprodução de assimetrias, e desigualdades, nos autos e na vida real.
[1] Em abril de 2019, o governo federal publicou o Decreto nº 9.759, que alterou completamente esse ecossistema de participação institucional na gestão pública, extinguindo e estabelecendo novas regras para a atuação de colegiados.
JULIANA GOMES MIRANDA – Advogada e pesquisadora, doutoranda em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília (UnB). Sócia fundadora do escritório Hernandez Lerner e Miranda Advocacia em Direitos Humanos